Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)
Desmistificando o homem-pássaro
O objetivo deste post é discutir sobre as diferentes
interpretações possíveis sobre Birdman, novo filme de Alejandro G. Iñárritu,
além de sua temática e seu ambíguo final.
É importante lembrar que todas as interpretações, desde que
justificadas com elementos do filme, são igualmente válidas, e as ideias aqui
expostas não devem ser encaradas como uma versão definitiva sobre a obra.
AVISO: Se você ainda não assistiu ao filme, não leia o
texto, pois contém spoilers.
A primeira coisa que chama a atenção no filme são seus
créditos inicias: ao fazer as letras desaparecerem aos poucos, Iñárritu cria
por alguns segundos a seguinte imagem:
Algo que à primeira vista me pareceu um pequeno floreio
descartável do diretor (principalmente pelo fato de “Amor” estar escrito em seu
idioma de origem, o espanhol, e não o inglês que é falado durante a projeção),
mas que se mostrou muito mais interessante levando em consideração o
desenvolvimento da trama, podendo exercer diversas funções.
A primeira delas é a mais óbvia: a palavra é uma referencia
a uma das temáticas do filme – o amor (a peça que Riggan está adaptando se
chama “De Que Falamos Quando Falamos de Amor”; ele quer se sentir amado,
admirado; o amor da filha é algo que ele tenta conquistar o filme inteiro).
A segunda possibilidade é um pouco mais simples: com as
letra na tela é possível formar a frase “I am Birdman” (Eu sou Birdman) – algo
curioso, mas descartável.
E a terceira é a frase: “am I Bird or Man?” (Eu sou um
pássaro ou um homem?), que já traz uma discussão temática mais complexa e
interessante, algo que voltarei a abordar daqui a pouco.
Indo para o filme em si, a primeira imagem que vemos é a de
um meteoro caindo em direção ao solo – uma metáfora clara da carreira do protagonista,
que está em constante decadência há anos.
Ao sermos apresentados aos personagens nos damos conta de
que o filme foi feito para simular um único plano-sequência, ou seja, são duas horas
de um take só sem cortes (aparentes, é claro). Isso é algo que só pela técnica
já vale a pena, mas neste caso, consegue ser relevante não só visual quanto
tematicamente, já que acaba simulando uma peça de teatro (o filme é sobre a
adaptação de uma peça) e dando a narrativa um ritmo frenético, fazendo o
espectador compartilhar os sentimentos de urgência experimentados pelo
protagonista.
A escolha de filmar em plano-sequência também é um desafio
enorme para os atores, pois com uma direção convencional, ao gravar a mesma
cena diversas vezes, o montador tem a opção de pegar uma fala de um take, uma
reação de outro, e assim montar uma interpretação uniforme e sempre no máximo
que o ator pode oferecer. Já ao gravar tudo de uma vez, os atores precisam se
manter no máximo de sua técnica a todo o momento, não dando espaço para erros –
o que torna o trabalho do elenco, em especial a performance central de Michael
Keaton, ainda mais admirável.
A ausência de uma montagem convencional acaba também
apresentando um desafio para a construção da tensão e do ritmo da narrativa, já
que não é possível o uso de cortes rápidos, e isso acaba dando uma
responsabilidade ainda maior à trilha sonora. Usando, praticamente, apenas
ritmos de bateria o filme todo, Antonio Sanchez faz um trabalho admirável ao
representar com seus solos a confusão mental que se passa a todo o momento pela
cabeça do protagonista, e a opção de brincar com a diegese da música mostrando
o baterista tocando a trilha sonora dentro
do filme, é uma ironia interessante e uma ótima escolha por parte do diretor.
Outra coisa interessante em Birdman é a sua metalinguagem,
especialmente na escolha dos atores: Michael Keaton também ficou famoso
interpretando um super-herói nos anos 90, e desde então tem dificuldades para
conseguir papeis relevantes, enquanto Edward Norton é conhecido por ter um
temperamento difícil, assim como o seu personagem.
Interpretações sobre o final:
O final do filme pode parecer em um primeiro momento
estranho, já que parece indicar que Riggan realmente era capaz de voar, algo
que o filme mesmo já havia desmentido (logo após ele fazer um longo voo pelas
ruas da cidade até chegar ao teatro, vemos um taxista correndo atrás dele pedindo
o dinheiro da corrida – ou seja, o “voo” só existiu em sua cabeça, pois o que
ele realmente estava fazendo era andar de carro).
Isso deixa claro que pelo menos em alguns momentos (os que
mostram coisas “sobrenaturais”, como os poderes da mente de Riggan) o filme
assume o ponto de vista do personagem, e nos mostra o que está passando em sua
cabeça, e não o que realmente está acontecendo.
Sendo assim, se Riggan demonstrasse realmente saber voar no
final do filme, o roteiro estaria se contradizendo, o que não faria sentido.
Então a cena final não deve ser encarada de maneira literal, mas ao pensar
sobre o que ela realmente pode significar, só pude pensar em duas opções
plausíveis.
1ª Interpretação:
A primeira interpretação seria: a cena final não aconteceu
realmente, Riggan não se jogou pela janela do quarto e Sam não retornou ao
local (ela não tinha motivo aparente para fazer isso), e seu olhar orgulhoso ao
ver o pai “voar” representa o seu sentimento de felicidade por ele finalmente
ter alcançado o que queria: o sucesso.
Ou seja, a cena é uma representação do que se passava pela
cabeça dos personagens: Riggan finalmente alcançou a fama e se sentiu
realizado, e Sam estava orgulhosa – simples assim.
E o fato de esse sucesso ser representado como um voo
remente diretamente ao Birdman (a antiga glória do protagonista), e também
acaba gerando uma ironia temática interessante (lembra-se do “Bird or Man?” do
início?)
Outra coisa que prova esse ponto de vista é o fato do “novo”
nariz de Riggan o deixar parecido com o traje do Birdman (que representa para
ele o único momento de sua vida em que ele alcançou o sucesso e foi querido
pelas pessoas), e ao perceber isso ele “voa”.
2ª Interpretação: (créditos para o site Weltretter, que em
seu texto sobre o filme me fez olhar para o filme dessa maneira. Link aqui).
A segunda opção já é um pouco mais complexa, mas também mais
coerente a meu ver, já que não apenas justifica o final como também dá uma
maior coerência a outros acontecimentos durante o filme.
A possibilidade é: o filme TODO se passa sob o ponto de
vista de Riggan, e o que vemos não está necessariamente acontecendo daquele jeito (em alguns momentos,
talvez), mas é a maneira com que o personagem
está vendo.
Sendo assim, faz sentido, como escrevi anteriormente, que as
cenas em que ele demonstra seu poder (ao mover coisas e voar) representem sua
imaginação, e a cena do taxi funciona como uma maneira do diretor nos lembrar
de que estamos dentro da cabeça do personagem. E se considerarmos essa
interpretação, o plano-sequência ganha mais uma justificativa (afinal, a mente de
Riggan não pára) e os únicos corte visíveis do filme (os que acontecem antes da
cena final) também ocorrem por uma razão: o personagem está inconsciente.
As cenas em que o protagonista não aparece também não são
mostradas como elas realmente
aconteceram e sim como ele imagina: o
namoro de Sam com Mike, por exemplo, representa seu ciúme de que sua filha se
envolva com alguém tão complicado.
Já a cena evolvendo as personagens de Naomi Watts e Andrea
Riseborough representa o seu desejo de ser importante (nesse momento, a
aprovação dele se mostra importante para as duas personagens), e o beijo entre
elas só intensifica essa possibilidade, pois pode representar um pensamento de
Riggan, já que este parece se sentir atraído pelas duas.
Outra coisa que essa interpretação explica é a figura da
crítica, que é apresentada de maneira caricatural, disposta a acabar com a peça
a qualquer custo. Se fôssemos encarar isso de maneira literal, seria um erro
por parte do filme, mas levando em consideração de que tudo é contado sob o
ponto de vista do protagonista, essa caricatura já faz sentido: ele a enxerga desse modo, disposta a arruiná-lo.
Mas ao escrever uma crítica positiva, a personagem demonstra que é capaz de
reconhecer a qualidade da peça, ou seja, o que ela havia falado antes não
aconteceu realmente, foi apenas o que o protagonista entendeu, ou quis ouvir
(para justificar uma possível crítica ruim, provavelmente).
Essa interpretação também abre a possibilidade para dois
finais distintos – um feliz, e um pessimista (você escolhe em qual prefere
acreditar).
O feliz é o que eu já havia proposto na primeira
interpretação, e que também faz sentido nesse ponto de vista: Riggan não estava
realmente voando e nem Sam estava realmente na janela – ele apenas sente como
estivesse finalmente voando e ela se mostra orgulhosa.
Mas é o final pessimista que se mostra mais completo e
fascinante: a figura do Birdman aparece várias vezes durante o filme falando
com o protagonista (o humilhando, na maioria das vezes), e o que o site
Weltretter (link aqui) propôs e me pareceu extremamente coerente, é que essa
figura nada mais é do que a depressão.
Ela está constantemente tentando deixar o personagem
desestimulado, deprimido, mas mesmo assim ele consegue passar por cima e fazer
uma incrível peça, que o faz alcançar o que ele sempre quis. Mas ao ir ao
banheiro do hospital e encontrar o Birdman, Riggan se dá conta de que nem mesmo
o sucesso é capaz de livrá-lo de sua doença, então comete suicídio. E o que Sam
realmente vê da janela do hospital é seu pai morto, mas como o filme é sob o
ponto de vista dele (mesmo quando ele
não está em cena), vemos a personagem reagir da maneira com que ele gostaria que ela reagisse: feliz e
orgulhosa, pois o pai conseguiu o sucesso que queria e agora finalmente
encontrou a paz.
É um final triste e pessimista, mas, pelo menos a meu ver, é
também o mais coerente em explicar cada detalhe dessa fascinante e inesquecível
obra-prima.
Esse texto não foi bem uma crítica, mas eu não poderia deixar de avaliar: Excelente! |
João Vitor, 6 de Março de 2015.