Há uma teoria informal entres os
cinéfilos que diz que os montadores tendem a se tornar melhores cineastas do
que os diretores de fotografia, pois enquanto um diretor de fotografia é mais
facilmente seduzido pela beleza puramente plástica de um filme, um montador tem
uma visão mais objetiva que busca criar sentido narrativo através dessa
estética.
E vendo Bingo – O Rei das Manhãs, primeiro longa-metragem do consagrado
montador Daniel Rezende, é fácil entender essa ideia, já que mesmo sendo um
filme de estreia, é também um trabalho seguro, com um controle de ritmo
impressionante, e que funciona tanto como estudo de personagem quanto como
entretenimento pop.
A trama, baseada na vida do
intérprete do palhaço Bozo dos anos 80, conta a história de um aspirante a ator
que encontra fama ao protagonizar um programa matinal infantil, mas devido a
uma cláusula de contrato, não tem o reconhecimento que deseja. Ao mesmo tempo,
lida com vício em drogas e o distanciamento emocional de seu filho pequeno.
O roteiro tem suas ideias
esquemáticas básicas de filme-biografia: um protagonista com uma motivação
pessoal, a busca por reconhecimento, a passagem do sucesso para o declínio,
etc. Mas o que importa é que essas ideias são muito bem executadas: ao invés de
simplesmente incluir a figura de um filho para o protagonista como se isso
fosse o suficiente para torna-lo humano, o roteiro cria uma interação palpável
entre eles, e a rima visual que envolve um beijo no nariz, mesmo esquemática,
funciona. E por mais que a cena que traga o filho ligando ao vivo para o pai
para cobrá-lo emocionalmente peque um pouco pela inverossimilhança, ao menos
funciona como representação simbólica (principalmente quando consideramos que é
um diálogo entre pai e filho separados literalmente por uma tela de televisão).
Além disso, o texto também consegue
fazer com que o talento cômico de seu protagonista seja algo crível (a cena que
o traz fazendo uma audição para o papel do palhaço é particularmente inspirada),
e utiliza com economia e precisão cenas de “imaginação” ou “sonho” não
simplesmente pela brincadeira narrativa, mas para ajudar a evocar a atmosfera
do filme e desenvolver a construção psicológica do personagem principal.
Há um ou outro detalhe um pouco
mais mal resolvido, como a sequência que acompanha o protagonista em um
“estágio” para aprender a ser palhaço, que mesmo não sendo gratuita desvia o
foco dos elementos principais do filme (e o fato dessa sequência trazer um ator
de impressão tão forte como Domingos Montagner ironicamente a torna ainda mais
problemática por parecer mais importante do que realmente é), mas nada que
incomode por muito tempo ou torne o filme muito irregular.
Impressionando principalmente
pela energia que imprime ao filme, o diretor Daniel Rezende consegue evocar uma
atmosfera envolvente seja por elementos puramente cinematográficos (há vários
planos-sequência memoráveis durante a projeção) ou então por um uso criativo de
elementos pop já conhecidos pelo público (a cena ao som de “Conga, Conga, Conga”
é um de seus melhores momentos).
E enquanto a fotografia traz um
clima de nostalgia com suas luzes brancas estouradas, a direção de arte se
diverte com as cores exuberantes na reconstrução de época dos anos 80, que
refletem o estado de espírito de um país que se sentia na necessidade de
ostentar sua liberdade recém adquirida após uma rigorosa ditadura.
Se equilibrando muitíssimo bem
entre o trágico e o cômico, e sendo ao mesmo tempo um estudo de personagem
interessante e um entretenimento de alta qualidade, Bingo – O Rei das Manhãs é uma ótima surpresa, um dos melhores
filmes do ano, mais uma prova de capacidade do cinema brasileiro e também a
promessa de um novo ótimo diretor.
Muito Bom! |
João Vitor, 7 de Setembro de 2017.