O Falcão Maltês (ou Relíquia
Macabra), de 1941, não é o primeiro filme do gênero noir (O Homem dos Olhos
Esbugalhados, de 1940, leva esse crédito), mas é um dos mais influentes e
também umas das obras mais fundamentais para entender a essência deste
fascinante gênero, uma vez que aqui já podemos notar vários dos elementos que
depois viriam a ser tão marcantes em filmes como O Terceiro Homem (Carol Reed, 1949) e Crepúsculo dos Deuses (Billy Wilder, 1950) – filmes que figuram na
minha lista de melhores de todos os tempos.
O roteiro escrito pelo diretor
John Huston, adaptado de um livro de Dashiell Hammett, segue o detetive
particular Sam Spade (Humphfrey Bogart), que é contratado por uma mulher
misteriosa para encontrar sua irmã. Porém, a investigação resulta na morte de
seu parceiro de trabalho, e o detetive logo se descobre no meio de uma busca
por uma estatueta antiga e valiosa no formato de falcão.
A primeira coisa a se notar de
icônico no filme, e que viria e se tornar uma das marcas do gênero noir, é a figura do anti-herói. Responsável por alavancar a carreira de um dos maiores
nomes da história do cinema americano (Humphfrey Bogart – que a partir dali
protagonizaria clássicos como Casablanca
e O Tesouro de Sierra Madre), o
detetive Sam Spade (repare no sobrenome) é a representação completa do
anti-herói: sempre disposto a levar vantagem sobre os outros personagens
(chegando até a subornar a personagem vivida por Mary Astor – sobre quem
comentarei mais no próximo parágrafo –, mesmo quando esta se encontra em
situação financeira precária), ele ainda tenta sempre manter um distanciamento
emocional de tudo o que o cerca (quando seu parceiro morre, por exemplo, sua
primeira reação é mandar refazer a fachada de seu escritório para retirar o
sobrenome do falecido, e, além disso, logo depois ficamos sabendo que o próprio
Spade mantinha um caso com a esposa deste parceiro – caso este que também era
administrado com frieza pelo detetive, uma vez que quando a viúva o pergunta se
agora será possível eles ficarem juntos, sua reação é de pura indiferença e
descaso).
Fachada do escritório da dupla |
Fachada após a morte de Archer |
E é necessário aplaudir a
fantástica atuação de Bogart, que vive o personagem com frieza absoluta,
demonstrando com leves e sutis movimentos com a boca seus prazeres momentâneos
ou seu desprezo para com outros personagens, sendo notável também como o ator
sugere de maneira apropriadamente dúbia e sutil o possível interesse amoroso
entre seu personagem e a de Mary Astor, já que este é um detalhe que cabe à
interpretação de cada espectador decidir se ocorreu de fato ou não.
E é na personagem vivida por Mary
Astor que podemos notar mais uma característica marcante do noir: a femme fatale – uma mulher
misteriosa, que usa seu poder de sedução para conseguir o que quer, e no
processo pode ou não fazer com que o anti-herói se apaixone por ela (mais uma
vez, este é um detalhe que cabe à interpretação do espectador – assista ao
filme e tire suas próprias conclusões).
Mas não é apenas na trama e nos
personagens que O Falcão Maltês se
mostra interessante, uma vez que a abordagem do diretor John Huston (em seu
primeiro trabalho!) é igualmente fascinante e rica. É impressionante notar, por
exemplo, o domínio que o cineasta tem da mise-en-scène
(a disposição dos atores e outros elementos no quadro), por exemplo: quando o
diretor quer demonstrar que no meio de uma discussão um personagem assume a
posição central e mais segura em relação aos outros, ele o traz sentado em
tela, mantendo os outros em pé e em movimento, o que reforça a posição
dominante representada por ele.
Igualmente interessante é notar
como John Huston já demonstrava domínio sobre o uso de ângulos plongée e contra
plongée (câmera inclinada de cima para baixo e de baixo para cima,
respectivamente) para representar vulnerabilidade ou (com mais frequência) imponência,
uma vez que esta foi uma técnica popularizada no cinema americano no mesmo ano
por Orson Welles em seu fantástico Cidadão
Kane (mas é claro que durante a produção de Falcão Maltês o filme ainda não estava pronto, ou seja, é quase
como se neste aspecto os dois filmes se equivalessem em vanguardismo, embora, é
bom lembrar, esta não era a única novidade trazida pelo revolucionário filme de
Welles – mas isto pode ser assunto para outro post futuro).
Mas talvez o mais interessante na
abordagem estética do filme seja sua influência expressionista ao retratar o
universo em que vivem aqueles personagens. Trazendo quase sempre o quadro cheio
de sombras e fumaças, John Huston e sua equipe ainda fazem um belo trabalho ao
trazerem constantes listras contínuas em tela (seja nos figurinos dos
personagens, nas sombras, ou até mesmo nas janelas), o que cria um ambiente
visual de prisão que reflete o submundo no qual os personagens vivem, e ainda
(evite o restante deste parágrafo se ainda não viu o filme) sugere de maneira
irônica e elegante o destino inevitável da maioria daquelas figuras: a prisão
(representada também de maneira visual pelo diretor ao trazer a personagem de
Mary Astor atrás das grades de um elevador em sua última aparição no filme).
Sendo um filmaço à frente de seu
tempo e também uma obra que define um gênero tão rico e fascinante, O Falcão Maltês é um clássico e não é por
acaso. Além de trazer uma trama interessante povoada por personagens
tridimensionais que podem surpreender a qualquer momento, o filme pode ser
ainda, sob um olhar mais atento, uma aula de história do cinema e linguagem
cinematográfica.
João Vitor, 26 de Novembro de
2016.