Neste último final de semana (29 e 30/10) eu pude, pela
primeira vez, conhecer a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (que
chegou agora em sua 40ª edição). Segue então pequenos textos sobre os filmes
que assisti:
O primeiro deles foi o drama-cômico/comédia-dramática
mexicano “Mr. Pig”, dirigido por Diego Luna e que traz Danny Glover no papel
principal. O filme segue um senhor criador de porcos que tem um relacionamento
distante com a filha e enfrenta sérias dificuldades financeiras. O filme o
acompanha em sua viagem para o México para vender um de seus porcos para o
abate, mas sua afeição ao animal o fará ter alguns problemas em se desfazer
dele. O relacionamento complicado com a filha eventualmente também vem à tona
na trama.
O mais interessante no filme, e o que o faz valer a pena, é
o tom de sua narrativa, que equilibra muito bem um senso de humor peculiar (as
cenas envolvendo o relacionamento do protagonista com seu porco são muitas
vezes hilárias) e sua carga dramática (a relação conturbada entre pai e filha é
apropriadamente incômoda e melancólica). E nisso a atuação central de Danny
Glover se mostra impecável, já que o ator consegue evocar sensibilidade e
tristeza no olhar, ao mesmo tempo em que protagoniza momentos completamente
engraçados sem nunca parecer forçado.
Mas o grande problema do filme é sua (falta de) estrutura.
Não acho justo dizer que a narrativa chegue a ficar completamente aborrecida,
mas falta ao roteiro um começo, meio, e fim. Sua estrutura mais parece um
compilado de cenas que ao atingirem o limite de duração do filme, chegam a um
fim.
No início pode até parecer que a trama será um autêntico road movie, enquanto acompanhamos o
personagem em sua viagem para vender seu porco. Mas logo esse conflito já se
resolve, e o restante da projeção é basicamente o protagonista e sua filha
passeando de carro enquanto tentam encontrar o que fazer (por mais que no
caminho gerem momentos verdadeiramente inspirados).
No geral, “Mr. Pig” acaba sendo um bom filme que vale por
seu tom e por seu protagonista muito mais do que por sua história.
Bom! |
O segundo filme que eu vi foi o impactante “O Nascimento de
Uma Nação”, de Nate Parker.
O filme se passa no século XIX, em Virgínia, e conta a
história real (embora com várias liberdades, uma vez que não há muitos
registros sobre o que realmente aconteceu) do escravo Nate Turner, que por sua
capacidade oratória e por saber ler, era utilizado por seus senhores para
pregar religião e obediência a outros escravos. Porém, com o passar do tempo,
Nate começou a perceber o tamanho da injustiça a qual era submetido e liderou
uma rebelião que resultou na morte de dezenas de senhores de escravos, e
posteriormente, por retaliação, na execução de centenas de negros.
Como não poderia deixar de ser, o filme tem alguns momentos
verdadeiramente chocantes (um que envolve uma destruição de dentes me incomodou
demais), e consegue fazer o espectador compreender o que levou o personagem
principal a tomar as decisões que tomou (mesmo que isso tenha resultado em
fracasso).
E nisso a atuação central do também diretor Nate Parker se
mostra muito eficiente, já que consegue fazer muito bem a transição de um
personagem mais passivo e conformado para um líder de revolução sedento por
justiça (ainda que a ingenuidade excessiva do personagem em alguns momentos
tenha me parecido um pouco forçada).
Visualmente o filme também impressiona (as tomadas aéreas
das plantações de algodão são de tirar o fôlego), e o diretor demostra um bom
timing musical ao utilizar a melancólica canção “Strange Fruits”, de Billie
Holiday, para acompanhar um dos momentos mais dolorosos da narrativa.
Dito isso, o filme em alguns momentos peca pelo exagero – e
não digo nem em relação à violência, já que (com exceção da já comentada cena
dos dentes) as torturas aqui mostradas nem são tão fortes quanto aquelas
retratadas em filmes como “12 Anos de Escravidão”. Refiro-me sim a momentos
como aquele, no terceiro ato, que traz uma “visão” do protagonista com um anjo,
ou então o momento que traz os escravos recém “libertos” (temporariamente)
falando o que cada um estaria fazendo caso ainda estivessem escravizados (cena
que me lembrou daquela no final de “A Lista de Schindler”, onde o protagonista
dizia quantas vidas cada objeto pessoal seu poderia ter salvado se tivesse sido
vendido).
Mas mesmo com eventuais tropeços, e uma certa pretensão
exagerada em seu título (que faz referência ao clássico de 1915 dirigido por D.
W. Griffith que, mesmo absolutamente racista, tem uma importância enorme para a
história do Cinema) “O Nascimento de Uma Nação” é um filme bastante impactante,
competente, e consegue ter uma discussão temática que, infelizmente, ainda é
atual. “Eles estão nos matando por sermos negros”, diz uma personagem em certo
momento do filme – basta olharmos para as ações violentas cometidas por
policiais recentemente (seja nos Estados Unidos ou no Brasil) para percebermos
que nos últimos séculos as coisas mudaram bem menos do que deveriam.
Muito Bom! |
Já o terceiro foi provavelmente o mais divertido, a comédia
romena “Dois Bilhetes de Loteria”.
Neste filme temos um trio de amigos fracassados e
desajeitados que um dia ganham na loteria, perdem o bilhete premiado em um
assalto, e partem em busca dos ladrões que não sabem da existência do prêmio.
A abordagem estética do diretor Paul Negoescu é
surpreendentemente eficiente. Assim como a maioria dos filmes produzidos na
Romênia, o cineasta opta por não utilizar trilha sonora instrumental, e filma
quase todas as cenas em um único plano estático e sem cortes.
O que é interessante é que assim o filme não apela para
recursos mais óbvios para provocar risada, como uma música “engraçadinha” ou
então cortar para um plano mais fechado para dar maior destaque na reação de
algum personagem. Ao manter um único plano aberto por cena, o diretor deixa o
olhar do espectador percorrer a imagem e identificar onde está a piada, que
muitas vezes se encontra em um personagem que está em segundo plano.
Além disso, o roteiro traz diversos momentos que são
verdadeiras aulas de timing cômico (a cena que envolve uma discussão sobre a
cor de um carro é minha favorita) e a dinâmica entre os personagens é muito
boa, surpreendendo também pelo senso de humor politicamente incorreto (a cena
que traz os personagens principais tentando tirar informações de uma criança e deixando-a
com sérios problemas com seus pais é hilária e jamais poderia ocorrer em um
filme mais comercial).
Apenas três detalhes me incomodaram no filme: o primeiro é a
previsibilidade da trama (chega uma hora em que é óbvio o que irá acontecer
quando eles finalmente encontrarem os ladrões, mas o roteiro parece achar que é
surpresa); o segundo é o exagero em uma coincidência que ocorre no terceiro ato
(ainda que aqui dê para relevar um pouco, já que o próprio filme se aproveita
desta falha para se encerrar em uma nota engraçada e coerente com o restante da
narrativa); e o terceiro é uma piadinha autorreferencial rápida que é até
engraçadinha, mas tira o espectador do filme e não condiz com o senso de humor
do restante da projeção.
Mas estas são falhas bem pequenas e não atrapalham a enorme
diversão que é este filme hilário.
Muito Bom! |
E por último, sendo também o melhor dos quatro, eu vi o novo
filme do iraniano Asghar Farhadi (responsável pelos fantásticos “À Procura de
Elly”, “A Separação” e “O Passado”): “O Apartamento”.
Na realidade, este filme não está entre os melhores
trabalhos do diretor, sendo até mais fracos do que seus últimos filmes, mas
ainda é muito muito bom.
Não darei muitos detalhes da trama, pois acredito que o
filme seja melhor apreciado assim. Basta dizer que o roteiro acompanha um casal
que precisa se mudar para um novo apartamento, e um incidente envolvendo um
cliente da antiga moradora faz com que suas vidas mudem completamente.
Assim como os outros trabalhos de Farhadi, uma das coisas que
mais surpreende no filme é sua capacidade de criar personagens completamente
humanos, que se encontram em situações às quais qualquer um pode se
identificar. Aqui não há vilões e heróis, ou um lado certo e um errado, todos
são humanos capazes de bondade e também de atos repulsivos.
Sendo assim, mesmo sendo quase todo composto de diálogos, o
filme prende a atenção muito mais do que muitos filmes de ação.
Falta um pouco ao filme a qualidade estética normalmente
presente nos trabalhos do diretor (principalmente se compararmos ao seu filme
anterior, “O Passado”), e em seu terceiro ato o roteiro verbaliza algumas
coisas que poderiam ser mais sutis (em determinado momento, por exemplo, uma
personagem diz “Este homem é tudo para mim”, verbalizando algo que poderia ter
ficado claro apenas com suas ações – o próprio diretor já demonstrou ser capaz
de muito mais), mas o impacto do que o filme tem a dizer (e como ele diz) é tão
forte que isso acaba nem sendo um problema tão grande.
Sendo uma experiência impactante e marcante, mesmo que
abaixo do que seria o esperado de um diretor tão eficiente, “O Apartamento”
está sem dúvidas entre os melhores filmes do ano.
Muito Bom! |
João Vitor, 2 de Novembro de 2016.
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