“Perdido em Marte” é um filme
surpreendentemente otimista e divertido. Mesmo contando uma história que tem
uma carga dramática inerente (envolvendo um personagem sozinho em um planeta
deserto), este novo trabalho de Ridley Scott até tem sua dose de melancolia,
mas nunca perde o bom humor e, mais do que isso, se mostra um manifesto
“pró-humanidade”, nos mostrando que nossa espécie, mesmo com seus inúmeros
problemas, vive seu melhor período histórico e tem uma tendência natural para a
empatia e a união para resolver problemas.
A trama é bem simples: durante
uma missão tripulada em Marte, o astronauta Mark Watney (Matt Damon) é dado
como morto após se ferir em uma poderosa tempestade e é deixado para trás por
seus companheiros. Mas por sorte ele sobrevive e tem que tentar se virar
sozinho em um planeta com condições desfavoráveis e com recursos limitados. Ao
mesmo tempo, na Terra, os cientistas da NASA tentam organizar um plano para
trazê-lo de volta a tempo e em segurança.
Logo em seus 10 minutos iniciais
o filme já é hábil em estabelecer, através de seus diálogos ágeis e seu
competente elenco, um descontraído clima de camaradagem entre os membros da
tripulação (o que se mostra de fundamental importância no decorrer da
narrativa), e de maneira igualmente competente o clima logo fica tenso (reparem
nas luzes piscando atrás dos personagens – recurso já utilizado pelo diretor em
“Alien”) e sem perder tempo o protagonista já se encontra sozinho em Marte e a
história pode se desenrolar.
Ridley Scott é conhecido por abordagens
mais pessimistas (como em “Blade Runner” e “O Gângster”), além de sempre
demonstrar facilidade para criar um clima épico (mesmo em trabalhos medianos
como “Cruzada” e “Prometheus”), mas comédia não é o seu forte (vide o desastre
que foi “Um Bom Ano”). Sendo assim, é surpreendente que neste “Perdido em
Marte” o diretor demostre um timing cômico tão afinado (ainda que deva muito a
seus atores – como abordarei daqui a pouco) e aposte em uma abordagem tão
otimista – se em “Blade Runner” até mesmo os replicantes (robôs) se mostravam
mais humanos do que os próprios humanos, e em “Alien” a vida dos tripulantes
era colocada em segundo plano pela corporação (que se interessava muito mais
pelo conhecimento científico proveniente da criatura monstruosa), aqui a vida
de um único personagem vale todos os investimentos possíveis da NASA, e até
mesmo países que são muitas vezes encarados como rivais, como os EUA e a China,
podem se unir em prol de um objetivo comum (salvar uma vida). E até mesmo a
tecnologia, que parece sempre ser a principal responsável pelo distanciamento
entre as relações humanas, surge aqui como a grande heroína da história,
possibilitando melhores comunicações e facilitando o trabalho de todos.
E por mais que o filme se mostre
uma grande reverência à ciência, é interessante como ele não encara a religião
como um problema ou como fruto da ignorância, chegando até a trazer o
protagonista criando fogo a partir da madeira de um crucifixo (uma metáfora que
não deixa de ter sua dose de ironia, mas acaba servindo para mostrar que tudo
tem sua utilidade).
O roteiro escrito por Drew
Goddard (adaptado do romance de Andy Weir) é hábil em deixar as explicações
científicas acessíveis para todos os públicos (sem precisar apelar para
diálogos muito expositivos), e também ao introduzir a burocracia enfrentada
pelos personagens – desde a relação com a mídia até as dificuldades de
financiamento das missões (mas, mais uma vez, sem nunca soar chato). E se a
opção de trazer o protagonista fazendo pequenos vlogs para registrar suas
ideias pode fazer o texto soar um pouco expositivo demais (como se ele
estivesse falando diretamente com o público), pelo menos ele faz questão de
justificar essa escolha dentro do contexto do filme – afinal, ao gravar seus
vídeos o personagem pode ao menos tentar fingir uma “socialização”. Além disso,
são nesses momentos que ficamos sabendo dos perigos que ele terá que enfrentar
e das inúmeras coisas que podem dar errado.
Aliás, é interessante como o
senso de humor do protagonista no início parece meio nervoso e desajustado
(reparem na maneira quase imatura como ele se aproxima da câmera para falar
algo em um de seus primeiros registros), e aos poucos vai surgindo de maneira
mais orgânica, servindo como um escudo contra as situações adversas nas quais
ele se encontra.
E igualmente interessante é ver
como o roteiro acha espaço para pequenas ironias – como no momento em que vemos
um personagem na Terra dizendo “no que será que ele está pensando?” (se
referindo ao protagonista), e no segundo seguinte o vemos na base em Marte
ouvindo Disco Music.
A fotografia de Dariusz Wolski
também merece destaque por trabalhar bem o 3D (destaque para os planos aéreos
de Marte e as cenas em gravidade zero) e por diferenciar muito bem os cenários
onde se desenrolam a trama (Marte é sempre fotografado com paleta laranja bem
forte, enquanto a nave com os outros tripulantes é cheia de branco e azul, e a
Terra tem cores mais chapadas e frias).
Mas muito da força do filme se
deve ao seu elenco – que, curiosamente, por ser homogeneamente tão competente
acaba até encobrindo o problema de excesso de personagens.
Matt Damon demonstra um timing
cômico perfeito, que é essencial para o funcionamento do filme, e faz seu
personagem ser agradável (assim, torcemos pela sua sobrevivência) com seu senso
de humor que é uma mistura bem dosada de ironia com prepotência.
Mas o elenco secundário também
não fica muito atrás. Jessica Chastain (atriz que surgiu há pouquíssimo tempo,
mas que já esteve presente em pelo menos uns 10 filmes interessantes) surge com
uma das personagens mais conflituosas do longa (seu sentimento de culpa por ter
deixado Mark para trás, ainda que de forma não intencional, é atormentador),
mas também uma das mais maduras e racionais – e a cena que envolve uma votação entre
a tripulação representa o auge de seu trabalho.
Michael Peña é outro que pôde
incluir seu timing cômico em seu personagem, mas também tem a chance de trazer
uma interessante carga dramática à trama – a cena que envolve uma conversa
online entre ele e o protagonista no meio no filme é possivelmente o momento
mais tocante da narrativa.
Já Jeff Daniels merece créditos
por conseguir evitar que seu personagem seja desagradável, convencendo com sua
experiência ainda que seja o mais pessimista e represente muitas vezes um
obstáculo para o resgate de Mark Watney.
Também não posso deixar de
elogiar o trabalho rápido, mas extremamente eficiente, de outros dois atores:
Mackenzie Davis e Donald Glover (este último ainda tem a chance de protagonizar
uma das cenas mais engraçadas do filme – aquela envolvendo um pregador de
papel).
E o que dizer da escolha de
trazer o personagem interpretado por Sean Bean no meio de uma referência a
Senhor dos Anéis?
(Para quem não se lembra, Bean
interpretou Boromir em “A Sociedade do Anel”).
A montagem também é ágil em
acompanhar três núcleos narrativos diferentes (um em Marte, um na Terra, e
outro na nave), e ainda consegue criar uma sequência memorável ao som de
Starman, de David Bowie – com pequenas rimas visuais (como ao trazer um
conserto de veículo tanto em Marte quanto na Terra) e também uma interessante
ironia com a letra da música (que traz em seu refrão o verso: “There’s a
starmen waiting in the sky” – “Tem um homem das estrelas esperando no céu”).
Também é interessante como o
filme celebra a diversidade e foge de um patriotismo americano cego: a ajuda da
China é de fundamental importância para a história; o diretor das missões
espaciais é negro; um dos tripulantes da expedição é de origem latina e outro
alemão (ele chega até a usar a bandeira de seu país em seu uniforme); e a líder
da nave é uma mulher – mais uma vez reforçando uma das mensagens da obra:
vivemos no melhor período histórico possível.
Não que o filme seja perfeito,
pois não é. Em nenhum momento ele deixa de ser previsível (o que não é
necessariamente um problema muito grande), o clímax é um pouco longo demais, e
também confesso que senti um pouco de falta do protagonista durante a hora
final (ainda que, levando em consideração a longa duração da narrativa, isto
acabe sendo um mal necessário).
Mantendo seu senso de humor até
seus créditos final, que são ao som de “I Will Survive” (“Eu Vou Sobreviver” –
olha a ironia), “Perdido em Marte” é o melhor filme de Ridley Scott em muito
tempo, e é também um manifesto otimista sobre a humanidade e sua capacidade de
se ajudar e resolver problemas – e diante de tantos filmes que se dedicam a
mostrar como o ser humano é falho e corrompido, um sopro de esperança é sempre
bem-vindo.
Muito Bom! |
João Vitor, 21 de Fevereiro de
2016.
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