Apesar de vários clássicos do
cinema terem sido adaptados do teatro (Fausto,
O Pagador de Promessas, e Uma Rua Chamada Pecado servem de
exemplo), o trabalho de transpor uma peça para as telas nunca é um trabalho
fácil. Dentre outras coisas, porque no teatro não há câmeras, dessa forma não
há uma montagem cinematográfica alternando planos mais abertos ou mais
fechados, deixando a cargo das atuações e do texto muitas coisas que no cinema
podem ser ditas de outras formas. Mas o que Denzel Washington faz aqui em sua
adaptação da peça Fences (Cercas),
que ele próprio já havia dirigido no teatro, é um trabalho admirável, uma vez
que apesar de reverenciar bastante o trabalho original, traz na dose exata
elementos cinematográficos que enriquecem sua ótima trama e seus complexos
personagens.
O roteiro creditado ao próprio
autor da peça original (que já morreu há mais de dez anos) segue Troy, um
catador de lixo de meia idade, em sua relação com sua família. Não é uma
história de grandes acontecimentos e reviravoltas, pois acima de tudo, o que
importa é a relação e as sutilezas entre os personagens.
E tudo o que se vê em tela
reflete a vida doída e desesperançosa desses personagens. Assim, a casa em que
vivem exibe em seu exterior tijolos velhos e sujos, além de ser rodeada por
árvores secas cheias de galhos mortos. Da mesma forma, seu interior tenta ser
aconchegante, mas não consegue disfarçar certo desconforto, e suas cores
pasteis refletem a tristeza daqueles que ali moram.
Os figurinos também seguem essa
lógica, já que vestem os personagens com roupas modestas, e sempre com cores
escuras. E a trilha sonora discreta, que é ausente em quase toda a projeção,
também é eficiente tanto por passar a tristeza da narrativa, como também por dialogar
com a linguagem do teatro, que naturalmente não traz sequências musicais que
são tão comuns no cinema.
As atuações também são de extrema
importância para a força do filme, uma vez que é uma história centrada em
personagens. Denzel Washington no papel principal evoca com seus cabelos e
braba grisalha toda a essência de um homem comum endurecido pela experiência, e
convence mesmo com uma linguagem corporal extravagante (claramente uma herança
de seu trabalho no teatro vivendo este mesmo personagem – o que não é
necessariamente um problema). Já Viola Davis consegue, com a ajuda do bom
roteiro, evitar que sua personagem seja apenas a figura genérica da “esposa do
protagonista”, fazendo com que sua personagem seja uma figura com motivações e
sentimentos próprios e tocantes, além de ter a oportunidade de protagonizar
alguns dos momentos mais fortes de todo o filme que com certeza serão lembrados
pela Academia na próxima cerimônia do Oscar.
Mas o que mais me impressionou no
filme foi a direção segura de Denzel Washington, que mesmo reverencial ao texto
original, consegue incluir personalidade própria e sempre de forma bastante
sutil. Em diversos momentos, Washington e sua diretora de fotografia Charlotte
Bruus Christensen optam por planos abertos em deep focus (quando tudo que está
em tela fica em foco) que mostram vários personagens juntos em cena – algo que
dialoga com a linguagem teatral, que por não ter câmeras, sempre traz vários
atores juntos em cena. Em outros momentos eles optam por uma montagem mais convencional,
com um personagem de cada vez em tela, mas mesmo nesses momentos mais comuns há
espaço para sutilezas: reparem, por exemplo, como ao filmar uma discussão entre
o protagonista e seu filho, Washington deixa seu personagem a princípio do lado
esquerdo, mais fraco da tela, mas após ele tomar o controle da situação, passa
a ocupar o lado mais forte e dominante, o direito.
Outras sutilezas também chamam a atenção
no trabalho de direção, como ao trazer a câmera girando em torno dos
personagens quando estes bebem uma bebida alcoólica, em uma sacada interessante
e bem humorada na dose certa, ou então ao enfocar o protagonista por detrás de
grades enquanto ele discute com sua esposa, reforçando seu sentimento de
aprisionamento.
E por mais que o roteiro acabe
parecendo um pouco reverencial demais com o texto original da peça, fazendo com
que os diálogos às vezes se estendam mais do que o necessário e a duração total
da projeção seja um pouco elevada, Cercas
é um filme muito impactante, com uma excelente direção, um elenco
fortíssimo, e que acima de tudo comove pelo drama e pela força de seus
complexos personagens.
Ótimo! |
João Vitor, 21 de Janeiro de 2017.
Crítica originalmente publicada no site Pipoca Radioativa: http://pipocaradioativa.com.br/
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