Em um dos momentos mais tocantes
de Ela, Theodore (personagem
principal interpretado por Joaquin Phoenix) diz que tem a impressão de que já
sentiu tudo o que era possível sentir durante sua vida, e que dali para frente
iria apenas experimentar “versões menores” desses sentimentos, e essa
perspectiva o deixa completamente melancólico. É um desses momentos que não só
trazem a essência da melancolia em si, como ainda explicita a necessidade
básica de todos os seres humanos: seus sentimentos.
Sim, os acontecimentos na vida de
uma pessoa são importantes, mas é a reação
e a percepção dela diante desses
acontecimentos que realmente contam.
E é nessa tecla delicada e ambiciosa
que este filme de Spike Jonze bate. Se o que realmente importa é a nossa reação
e sentimento diante de algo, qual é a importância do fato em si? E indo mais
além, quando amamos alguém, amamos a pessoa de fato ou a ideia que criamos dela (no caso, a percepção criada em nós pelos
nossos sentimentos diante de suas ações)? Sendo assim, o que impediria alguém
de se apaixonar por um computador com inteligência artificial? E, o que é mais
importante, o que este amor teria de tão diferente de um relacionamento
“normal”, uma vez que a inteligência artificial pode “fingir” (ou não?) todos
os sentimentos comuns de um ser humano? Porque mesmo que Samantha (o doce
Sistema Operacional do filme, com voz de Scarlett Johansson) não seja de fato
real, suas ações indiscutivelmente geram emoções genuínas em Theodore, e
afinal, não é isso que importa?
São muitas as perguntas que Ela propõe, e o mais interessante é que
Spike Jonze não se dá ao trabalho de julgar os sentimentos de seus personagens,
deixando ao espectador a tarefa de pensar sobre eles e tirar suas próprias
conclusões.
O que o filme deixa claro é que
para gerar uma emoção não é necessário algo existir de fato, o que comenta até
mesmo a natureza do próprio cinema e outras artes: acompanhamos personagens que
não existem de verdade, mas as emoções que eles provocam em nós são mais do que
reais.
Sendo assim, nada mais apropriado
do que o personagem principal ter um emprego tão curioso como o de “escritor de
cartas”, que recebe para montar cartas de amor encomendadas para outras
pessoas. O que ele escreve nas cartas
não é verdadeiro para ele (muitas vezes ele escreve para pessoas que nem sequer
conhece), mas isso não importa, já que quem ler as suas palavras com certeza
sentirá uma emoção genuína.
Outra cena reveladora do filme é
aquela que traz Theodore na cama tendo uma espécie de “transa à distância” com
uma desconhecida em um chat online. A relação é estranha e parece não provocar
emoção alguma nele. Porém, mais para frente no filme, Theodore volta a
experimentar esse “sexo virtual”, mas agora com Samantha, e o resultado para
ele é mais do que satisfatório. Ora, a desconhecida no chat era uma pessoa
real, já Samantha não, então por que Theodore consegue um envolvimento
emocional justo com ela? O sentimento que ele experimentou é menos real por ter
sido provocado por um sistema operacional?
Tendo ainda uma fantástica
performance central de Joaquin Phoenix, que é capaz de expressar melancolia com
o olhar mesmo quando surge sorrindo e consegue trazer um excelente timing
cômico (repare em sua expressão de estranhamento ao perceber que seu chat está
tomando uma direção estranha), Ela também
conta com um excelente design de produção futurista (que traz tristeza e
melancolia mesmo com todas suas cores), e possui momentos de beleza sublimes,
como os flashbacks que mostram a felicidade de Theodore com sua ex-esposa, ou a
cena que o traz cabisbaixo folheando um livro cheio de cartas de amor, cada uma
com um sentimento diferente que ele parece incapaz de compartilhar. E vendo
hoje este filme pela quarta vez, tive certeza de que via uma obra prima. E mais
uma vez me vi emocionado e tocado por aqueles personagens e suas dores – que
não existem de fato, mas serão menos reais por causa disso?
João Vitor, 18 de Dezembro de
2016.
Crítica originalmente publicada no site Pipoca Radioativa: http://pipocaradioativa.com.br/
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