sábado, 26 de novembro de 2016

O Falcão Maltês e o Film Noir

O Falcão Maltês (ou Relíquia Macabra), de 1941, não é o primeiro filme do gênero noir (O Homem dos Olhos Esbugalhados, de 1940, leva esse crédito), mas é um dos mais influentes e também umas das obras mais fundamentais para entender a essência deste fascinante gênero, uma vez que aqui já podemos notar vários dos elementos que depois viriam a ser tão marcantes em filmes como O Terceiro Homem (Carol Reed, 1949) e Crepúsculo dos Deuses (Billy Wilder, 1950) – filmes que figuram na minha lista de melhores de todos os tempos.

O roteiro escrito pelo diretor John Huston, adaptado de um livro de Dashiell Hammett, segue o detetive particular Sam Spade (Humphfrey Bogart), que é contratado por uma mulher misteriosa para encontrar sua irmã. Porém, a investigação resulta na morte de seu parceiro de trabalho, e o detetive logo se descobre no meio de uma busca por uma estatueta antiga e valiosa no formato de falcão.

A primeira coisa a se notar de icônico no filme, e que viria e se tornar uma das marcas do gênero noir, é a figura do anti-herói. Responsável por alavancar a carreira de um dos maiores nomes da história do cinema americano (Humphfrey Bogart – que a partir dali protagonizaria clássicos como Casablanca e O Tesouro de Sierra Madre), o detetive Sam Spade (repare no sobrenome) é a representação completa do anti-herói: sempre disposto a levar vantagem sobre os outros personagens (chegando até a subornar a personagem vivida por Mary Astor – sobre quem comentarei mais no próximo parágrafo –, mesmo quando esta se encontra em situação financeira precária), ele ainda tenta sempre manter um distanciamento emocional de tudo o que o cerca (quando seu parceiro morre, por exemplo, sua primeira reação é mandar refazer a fachada de seu escritório para retirar o sobrenome do falecido, e, além disso, logo depois ficamos sabendo que o próprio Spade mantinha um caso com a esposa deste parceiro – caso este que também era administrado com frieza pelo detetive, uma vez que quando a viúva o pergunta se agora será possível eles ficarem juntos, sua reação é de pura indiferença e descaso).



Fachada do escritório da dupla
Fachada após a morte de Archer











E é necessário aplaudir a fantástica atuação de Bogart, que vive o personagem com frieza absoluta, demonstrando com leves e sutis movimentos com a boca seus prazeres momentâneos ou seu desprezo para com outros personagens, sendo notável também como o ator sugere de maneira apropriadamente dúbia e sutil o possível interesse amoroso entre seu personagem e a de Mary Astor, já que este é um detalhe que cabe à interpretação de cada espectador decidir se ocorreu de fato ou não.

E é na personagem vivida por Mary Astor que podemos notar mais uma característica marcante do noir: a femme fatale – uma mulher misteriosa, que usa seu poder de sedução para conseguir o que quer, e no processo pode ou não fazer com que o anti-herói se apaixone por ela (mais uma vez, este é um detalhe que cabe à interpretação do espectador – assista ao filme e tire suas próprias conclusões).


Mas não é apenas na trama e nos personagens que O Falcão Maltês se mostra interessante, uma vez que a abordagem do diretor John Huston (em seu primeiro trabalho!) é igualmente fascinante e rica. É impressionante notar, por exemplo, o domínio que o cineasta tem da mise-en-scène (a disposição dos atores e outros elementos no quadro), por exemplo: quando o diretor quer demonstrar que no meio de uma discussão um personagem assume a posição central e mais segura em relação aos outros, ele o traz sentado em tela, mantendo os outros em pé e em movimento, o que reforça a posição dominante representada por ele.










Igualmente interessante é notar como John Huston já demonstrava domínio sobre o uso de ângulos plongée e contra plongée (câmera inclinada de cima para baixo e de baixo para cima, respectivamente) para representar vulnerabilidade ou (com mais frequência) imponência, uma vez que esta foi uma técnica popularizada no cinema americano no mesmo ano por Orson Welles em seu fantástico Cidadão Kane (mas é claro que durante a produção de Falcão Maltês o filme ainda não estava pronto, ou seja, é quase como se neste aspecto os dois filmes se equivalessem em vanguardismo, embora, é bom lembrar, esta não era a única novidade trazida pelo revolucionário filme de Welles – mas isto pode ser assunto para outro post futuro).











Mas talvez o mais interessante na abordagem estética do filme seja sua influência expressionista ao retratar o universo em que vivem aqueles personagens. Trazendo quase sempre o quadro cheio de sombras e fumaças, John Huston e sua equipe ainda fazem um belo trabalho ao trazerem constantes listras contínuas em tela (seja nos figurinos dos personagens, nas sombras, ou até mesmo nas janelas), o que cria um ambiente visual de prisão que reflete o submundo no qual os personagens vivem, e ainda (evite o restante deste parágrafo se ainda não viu o filme) sugere de maneira irônica e elegante o destino inevitável da maioria daquelas figuras: a prisão (representada também de maneira visual pelo diretor ao trazer a personagem de Mary Astor atrás das grades de um elevador em sua última aparição no filme).







Sendo um filmaço à frente de seu tempo e também uma obra que define um gênero tão rico e fascinante, O Falcão Maltês é um clássico e não é por acaso. Além de trazer uma trama interessante povoada por personagens tridimensionais que podem surpreender a qualquer momento, o filme pode ser ainda, sob um olhar mais atento, uma aula de história do cinema e linguagem cinematográfica.


João Vitor, 26 de Novembro de 2016.

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Mostra de São Paulo 2016 - Comentários


Neste último final de semana (29 e 30/10) eu pude, pela primeira vez, conhecer a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (que chegou agora em sua 40ª edição). Segue então pequenos textos sobre os filmes que assisti:


O primeiro deles foi o drama-cômico/comédia-dramática mexicano “Mr. Pig”, dirigido por Diego Luna e que traz Danny Glover no papel principal. O filme segue um senhor criador de porcos que tem um relacionamento distante com a filha e enfrenta sérias dificuldades financeiras. O filme o acompanha em sua viagem para o México para vender um de seus porcos para o abate, mas sua afeição ao animal o fará ter alguns problemas em se desfazer dele. O relacionamento complicado com a filha eventualmente também vem à tona na trama.


O mais interessante no filme, e o que o faz valer a pena, é o tom de sua narrativa, que equilibra muito bem um senso de humor peculiar (as cenas envolvendo o relacionamento do protagonista com seu porco são muitas vezes hilárias) e sua carga dramática (a relação conturbada entre pai e filha é apropriadamente incômoda e melancólica). E nisso a atuação central de Danny Glover se mostra impecável, já que o ator consegue evocar sensibilidade e tristeza no olhar, ao mesmo tempo em que protagoniza momentos completamente engraçados sem nunca parecer forçado.

Mas o grande problema do filme é sua (falta de) estrutura. Não acho justo dizer que a narrativa chegue a ficar completamente aborrecida, mas falta ao roteiro um começo, meio, e fim. Sua estrutura mais parece um compilado de cenas que ao atingirem o limite de duração do filme, chegam a um fim.

No início pode até parecer que a trama será um autêntico road movie, enquanto acompanhamos o personagem em sua viagem para vender seu porco. Mas logo esse conflito já se resolve, e o restante da projeção é basicamente o protagonista e sua filha passeando de carro enquanto tentam encontrar o que fazer (por mais que no caminho gerem momentos verdadeiramente inspirados).

No geral, “Mr. Pig” acaba sendo um bom filme que vale por seu tom e por seu protagonista muito mais do que por sua história.

Bom!

O segundo filme que eu vi foi o impactante “O Nascimento de Uma Nação”, de Nate Parker.


O filme se passa no século XIX, em Virgínia, e conta a história real (embora com várias liberdades, uma vez que não há muitos registros sobre o que realmente aconteceu) do escravo Nate Turner, que por sua capacidade oratória e por saber ler, era utilizado por seus senhores para pregar religião e obediência a outros escravos. Porém, com o passar do tempo, Nate começou a perceber o tamanho da injustiça a qual era submetido e liderou uma rebelião que resultou na morte de dezenas de senhores de escravos, e posteriormente, por retaliação, na execução de centenas de negros.

Como não poderia deixar de ser, o filme tem alguns momentos verdadeiramente chocantes (um que envolve uma destruição de dentes me incomodou demais), e consegue fazer o espectador compreender o que levou o personagem principal a tomar as decisões que tomou (mesmo que isso tenha resultado em fracasso).

E nisso a atuação central do também diretor Nate Parker se mostra muito eficiente, já que consegue fazer muito bem a transição de um personagem mais passivo e conformado para um líder de revolução sedento por justiça (ainda que a ingenuidade excessiva do personagem em alguns momentos tenha me parecido um pouco forçada).

Visualmente o filme também impressiona (as tomadas aéreas das plantações de algodão são de tirar o fôlego), e o diretor demostra um bom timing musical ao utilizar a melancólica canção “Strange Fruits”, de Billie Holiday, para acompanhar um dos momentos mais dolorosos da narrativa.

Dito isso, o filme em alguns momentos peca pelo exagero – e não digo nem em relação à violência, já que (com exceção da já comentada cena dos dentes) as torturas aqui mostradas nem são tão fortes quanto aquelas retratadas em filmes como “12 Anos de Escravidão”. Refiro-me sim a momentos como aquele, no terceiro ato, que traz uma “visão” do protagonista com um anjo, ou então o momento que traz os escravos recém “libertos” (temporariamente) falando o que cada um estaria fazendo caso ainda estivessem escravizados (cena que me lembrou daquela no final de “A Lista de Schindler”, onde o protagonista dizia quantas vidas cada objeto pessoal seu poderia ter salvado se tivesse sido vendido).

Mas mesmo com eventuais tropeços, e uma certa pretensão exagerada em seu título (que faz referência ao clássico de 1915 dirigido por D. W. Griffith que, mesmo absolutamente racista, tem uma importância enorme para a história do Cinema) “O Nascimento de Uma Nação” é um filme bastante impactante, competente, e consegue ter uma discussão temática que, infelizmente, ainda é atual. “Eles estão nos matando por sermos negros”, diz uma personagem em certo momento do filme – basta olharmos para as ações violentas cometidas por policiais recentemente (seja nos Estados Unidos ou no Brasil) para percebermos que nos últimos séculos as coisas mudaram bem menos do que deveriam.

Muito Bom!

Já o terceiro foi provavelmente o mais divertido, a comédia romena “Dois Bilhetes de Loteria”.


Neste filme temos um trio de amigos fracassados e desajeitados que um dia ganham na loteria, perdem o bilhete premiado em um assalto, e partem em busca dos ladrões que não sabem da existência do prêmio.

A abordagem estética do diretor Paul Negoescu é surpreendentemente eficiente. Assim como a maioria dos filmes produzidos na Romênia, o cineasta opta por não utilizar trilha sonora instrumental, e filma quase todas as cenas em um único plano estático e sem cortes.

O que é interessante é que assim o filme não apela para recursos mais óbvios para provocar risada, como uma música “engraçadinha” ou então cortar para um plano mais fechado para dar maior destaque na reação de algum personagem. Ao manter um único plano aberto por cena, o diretor deixa o olhar do espectador percorrer a imagem e identificar onde está a piada, que muitas vezes se encontra em um personagem que está em segundo plano.

Além disso, o roteiro traz diversos momentos que são verdadeiras aulas de timing cômico (a cena que envolve uma discussão sobre a cor de um carro é minha favorita) e a dinâmica entre os personagens é muito boa, surpreendendo também pelo senso de humor politicamente incorreto (a cena que traz os personagens principais tentando tirar informações de uma criança e deixando-a com sérios problemas com seus pais é hilária e jamais poderia ocorrer em um filme mais comercial).

Apenas três detalhes me incomodaram no filme: o primeiro é a previsibilidade da trama (chega uma hora em que é óbvio o que irá acontecer quando eles finalmente encontrarem os ladrões, mas o roteiro parece achar que é surpresa); o segundo é o exagero em uma coincidência que ocorre no terceiro ato (ainda que aqui dê para relevar um pouco, já que o próprio filme se aproveita desta falha para se encerrar em uma nota engraçada e coerente com o restante da narrativa); e o terceiro é uma piadinha autorreferencial rápida que é até engraçadinha, mas tira o espectador do filme e não condiz com o senso de humor do restante da projeção.

Mas estas são falhas bem pequenas e não atrapalham a enorme diversão que é este filme hilário.

Muito Bom!

E por último, sendo também o melhor dos quatro, eu vi o novo filme do iraniano Asghar Farhadi (responsável pelos fantásticos “À Procura de Elly”, “A Separação” e “O Passado”): “O Apartamento”.



Na realidade, este filme não está entre os melhores trabalhos do diretor, sendo até mais fracos do que seus últimos filmes, mas ainda é muito muito bom.

Não darei muitos detalhes da trama, pois acredito que o filme seja melhor apreciado assim. Basta dizer que o roteiro acompanha um casal que precisa se mudar para um novo apartamento, e um incidente envolvendo um cliente da antiga moradora faz com que suas vidas mudem completamente.

Assim como os outros trabalhos de Farhadi, uma das coisas que mais surpreende no filme é sua capacidade de criar personagens completamente humanos, que se encontram em situações às quais qualquer um pode se identificar. Aqui não há vilões e heróis, ou um lado certo e um errado, todos são humanos capazes de bondade e também de atos repulsivos.

Sendo assim, mesmo sendo quase todo composto de diálogos, o filme prende a atenção muito mais do que muitos filmes de ação.

Falta um pouco ao filme a qualidade estética normalmente presente nos trabalhos do diretor (principalmente se compararmos ao seu filme anterior, “O Passado”), e em seu terceiro ato o roteiro verbaliza algumas coisas que poderiam ser mais sutis (em determinado momento, por exemplo, uma personagem diz “Este homem é tudo para mim”, verbalizando algo que poderia ter ficado claro apenas com suas ações – o próprio diretor já demonstrou ser capaz de muito mais), mas o impacto do que o filme tem a dizer (e como ele diz) é tão forte que isso acaba nem sendo um problema tão grande.

Sendo uma experiência impactante e marcante, mesmo que abaixo do que seria o esperado de um diretor tão eficiente, “O Apartamento” está sem dúvidas entre os melhores filmes do ano.

Muito Bom!

João Vitor, 2 de Novembro de 2016.