quinta-feira, 7 de setembro de 2017

Crítica: Bingo - O Rei das Manhãs, de Daniel Rezende

Há uma teoria informal entres os cinéfilos que diz que os montadores tendem a se tornar melhores cineastas do que os diretores de fotografia, pois enquanto um diretor de fotografia é mais facilmente seduzido pela beleza puramente plástica de um filme, um montador tem uma visão mais objetiva que busca criar sentido narrativo através dessa estética.

E vendo Bingo – O Rei das Manhãs, primeiro longa-metragem do consagrado montador Daniel Rezende, é fácil entender essa ideia, já que mesmo sendo um filme de estreia, é também um trabalho seguro, com um controle de ritmo impressionante, e que funciona tanto como estudo de personagem quanto como entretenimento pop.


A trama, baseada na vida do intérprete do palhaço Bozo dos anos 80, conta a história de um aspirante a ator que encontra fama ao protagonizar um programa matinal infantil, mas devido a uma cláusula de contrato, não tem o reconhecimento que deseja. Ao mesmo tempo, lida com vício em drogas e o distanciamento emocional de seu filho pequeno.

O roteiro tem suas ideias esquemáticas básicas de filme-biografia: um protagonista com uma motivação pessoal, a busca por reconhecimento, a passagem do sucesso para o declínio, etc. Mas o que importa é que essas ideias são muito bem executadas: ao invés de simplesmente incluir a figura de um filho para o protagonista como se isso fosse o suficiente para torna-lo humano, o roteiro cria uma interação palpável entre eles, e a rima visual que envolve um beijo no nariz, mesmo esquemática, funciona. E por mais que a cena que traga o filho ligando ao vivo para o pai para cobrá-lo emocionalmente peque um pouco pela inverossimilhança, ao menos funciona como representação simbólica (principalmente quando consideramos que é um diálogo entre pai e filho separados literalmente por uma tela de televisão).

Além disso, o texto também consegue fazer com que o talento cômico de seu protagonista seja algo crível (a cena que o traz fazendo uma audição para o papel do palhaço é particularmente inspirada), e utiliza com economia e precisão cenas de “imaginação” ou “sonho” não simplesmente pela brincadeira narrativa, mas para ajudar a evocar a atmosfera do filme e desenvolver a construção psicológica do personagem principal.


Há um ou outro detalhe um pouco mais mal resolvido, como a sequência que acompanha o protagonista em um “estágio” para aprender a ser palhaço, que mesmo não sendo gratuita desvia o foco dos elementos principais do filme (e o fato dessa sequência trazer um ator de impressão tão forte como Domingos Montagner ironicamente a torna ainda mais problemática por parecer mais importante do que realmente é), mas nada que incomode por muito tempo ou torne o filme muito irregular.

Impressionando principalmente pela energia que imprime ao filme, o diretor Daniel Rezende consegue evocar uma atmosfera envolvente seja por elementos puramente cinematográficos (há vários planos-sequência memoráveis durante a projeção) ou então por um uso criativo de elementos pop já conhecidos pelo público (a cena ao som de “Conga, Conga, Conga” é um de seus melhores momentos).

E enquanto a fotografia traz um clima de nostalgia com suas luzes brancas estouradas, a direção de arte se diverte com as cores exuberantes na reconstrução de época dos anos 80, que refletem o estado de espírito de um país que se sentia na necessidade de ostentar sua liberdade recém adquirida após uma rigorosa ditadura.

Se equilibrando muitíssimo bem entre o trágico e o cômico, e sendo ao mesmo tempo um estudo de personagem interessante e um entretenimento de alta qualidade, Bingo – O Rei das Manhãs é uma ótima surpresa, um dos melhores filmes do ano, mais uma prova de capacidade do cinema brasileiro e também a promessa de um novo ótimo diretor.

Muito Bom!

João Vitor, 7 de Setembro de 2017.