domingo, 26 de fevereiro de 2017

Crítica: A Qualquer Custo, de David Mackenzie

É sempre natural que os filmes e as obras de arte em geral reflitam a realidade em que foram produzidos, fazendo com que importantes acontecimentos históricos sejam sempre temas recorrentes na filmografia de suas épocas (a alegria do fim da segunda guerra nos anos 40-50, a desilusão com o governo e a guerra do Vietnã nos EUA na década de 60-70, medo nuclear durante a guerra fria, etc.). Sendo assim, é interessante notar como este novo A Qualquer Custo usa uma estrutura aparentemente simples para retratar todo o ressentimento e descrença para com os grandes bancos após a crise de 2008.


O roteiro escrito por Taylor Sheridan (do excelente Sicário) se passa nos dias atuais e acompanha uma dupla de irmãos que para não perderem a fazenda da família no Texas decidem cometer uma série de assaltos a bancos.

Em sua estrutura, A Qualquer Custo pode parecer um filme convencional: temos um xerife experiente prestes a se aposentar, seu parceiro de longa data, uma dupla de assaltantes onde um é mais impulsivo e violento enquanto o outro é mais hesitante e tem preocupações com os filhos... Mas a verdade é que há muito mais complexidade nessas figuras do que a princípio pode parecer, e o roteiro funciona como um retrato da ruína do “American Dream”.

Primeiro, e mais óbvio, o fato de os irmãos estarem prestes a perderem sua moradia para os bancos (e estes também serem os alvos de seus assaltos) reflete todo o ressentimento de grande parte da população que se viu obrigada a pagar por uma crise provocada por grandes corporações.  E, além disso, o filme também comenta sobre a ruína da “família tradicional americana”, como ao deixar subentendido que os dois irmãos cresceram com um pai abusivo (o que posteriormente levou um deles a assassina-lo!), ou então ao trazer seu protagonista como uma figura que mantém uma relação completamente distante de seus próprios filhos.

E também é interessante como o filme acaba comentando sobre a história dos EUA e seu ciclo vicioso: em determinado momento, por exemplo, vemos um personagem de descendência indígena dizendo (ainda que de maneira um tanto quanto expositiva demais) que seus ancestrais tiveram toda sua propriedade roubada pelos europeus, e que agora os descendentes destes europeus estão tendo suas propriedades roubadas pelos bancos.

Sendo assim, é curioso notar como o filme traz em certo momento o xerife interpretado por Jeff Bridges andando contra o vento enrolado em um cobertor: a imagem nos remete imediatamente a uma capa de super-herói clássico – mas em um mundo pós-crise (moral e econômica), nada mais apropriado do que o “herói” (ou pelo menos o que está do lado da lei) do filme ter sua capa substituída por um pano velho e desbotado.

Outra coisa que se destaca no filme é o excelente timing do diretor David Mackenzie para escolher música, sendo particularmente marcante a cena que traz uma explosão de violência ao som de um rock n’ roll que está sendo tocado no som do carro de um personagem.


E enquanto a fotografia de Giles Nuttgens é eficiente em evocar o calor escaldante do Texas, o design de produção ajuda a retratar visualmente a temática do filme, como ao trazer elementos como pichações contra a guerra do Iraque em muros, propagandas de serviços financeiros para ajudar a pagar hipoteca, e (o meu preferido) traz de maneira discreta no canto de uma escrivaninha de banco uma plaquinha com a frase “Você é sempre bem-vindo aqui”, num toquezinho de ironia muito coerente com o restante da narrativa.

O elenco também não fica para trás. Ben Foster oferece talvez a melhor performance de sua carreira, vivendo seu personagem com uma intensidade absurda, mas que tem a oportunidade de trazer complexidade dramática em uma cena em que fala sobre sua mãe. Já Jeff Bridges (que deve conseguir uma indicação ao Oscar de ator coadjuvante) está excelente com sempre, e apesar do sotaque carregadíssimo, consegue passar toda a experiência e competência de seu personagem.

Conseguindo ainda comentar tangencialmente o fascínio americano por armas de fogo, A Qualquer Custo é um filmaço, que traz uma ação frenética, mas não perde o fôlego ao apostar em seus personagens, funcionando como um retrato devastador de sua sociedade e de sua época.

Ótimo!


João Vitor, 28 de Dezembro de 2016.

Crítica originalmente publicada no site Pipoca Radioativa: http://pipocaradioativa.com.br/

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