domingo, 26 de fevereiro de 2017

Crítica: Um Limite Entre Nós, de Denzel Washington

Apesar de vários clássicos do cinema terem sido adaptados do teatro (Fausto, O Pagador de Promessas, e Uma Rua Chamada Pecado servem de exemplo), o trabalho de transpor uma peça para as telas nunca é um trabalho fácil. Dentre outras coisas, porque no teatro não há câmeras, dessa forma não há uma montagem cinematográfica alternando planos mais abertos ou mais fechados, deixando a cargo das atuações e do texto muitas coisas que no cinema podem ser ditas de outras formas. Mas o que Denzel Washington faz aqui em sua adaptação da peça Fences (Cercas), que ele próprio já havia dirigido no teatro, é um trabalho admirável, uma vez que apesar de reverenciar bastante o trabalho original, traz na dose exata elementos cinematográficos que enriquecem sua ótima trama e seus complexos personagens.


O roteiro creditado ao próprio autor da peça original (que já morreu há mais de dez anos) segue Troy, um catador de lixo de meia idade, em sua relação com sua família. Não é uma história de grandes acontecimentos e reviravoltas, pois acima de tudo, o que importa é a relação e as sutilezas entre os personagens.

E tudo o que se vê em tela reflete a vida doída e desesperançosa desses personagens. Assim, a casa em que vivem exibe em seu exterior tijolos velhos e sujos, além de ser rodeada por árvores secas cheias de galhos mortos. Da mesma forma, seu interior tenta ser aconchegante, mas não consegue disfarçar certo desconforto, e suas cores pasteis refletem a tristeza daqueles que ali moram.

Os figurinos também seguem essa lógica, já que vestem os personagens com roupas modestas, e sempre com cores escuras. E a trilha sonora discreta, que é ausente em quase toda a projeção, também é eficiente tanto por passar a tristeza da narrativa, como também por dialogar com a linguagem do teatro, que naturalmente não traz sequências musicais que são tão comuns no cinema.

As atuações também são de extrema importância para a força do filme, uma vez que é uma história centrada em personagens. Denzel Washington no papel principal evoca com seus cabelos e braba grisalha toda a essência de um homem comum endurecido pela experiência, e convence mesmo com uma linguagem corporal extravagante (claramente uma herança de seu trabalho no teatro vivendo este mesmo personagem – o que não é necessariamente um problema). Já Viola Davis consegue, com a ajuda do bom roteiro, evitar que sua personagem seja apenas a figura genérica da “esposa do protagonista”, fazendo com que sua personagem seja uma figura com motivações e sentimentos próprios e tocantes, além de ter a oportunidade de protagonizar alguns dos momentos mais fortes de todo o filme que com certeza serão lembrados pela Academia na próxima cerimônia do Oscar.

Mas o que mais me impressionou no filme foi a direção segura de Denzel Washington, que mesmo reverencial ao texto original, consegue incluir personalidade própria e sempre de forma bastante sutil. Em diversos momentos, Washington e sua diretora de fotografia Charlotte Bruus Christensen optam por planos abertos em deep focus (quando tudo que está em tela fica em foco) que mostram vários personagens juntos em cena – algo que dialoga com a linguagem teatral, que por não ter câmeras, sempre traz vários atores juntos em cena. Em outros momentos eles optam por uma montagem mais convencional, com um personagem de cada vez em tela, mas mesmo nesses momentos mais comuns há espaço para sutilezas: reparem, por exemplo, como ao filmar uma discussão entre o protagonista e seu filho, Washington deixa seu personagem a princípio do lado esquerdo, mais fraco da tela, mas após ele tomar o controle da situação, passa a ocupar o lado mais forte e dominante, o direito.


Outras sutilezas também chamam a atenção no trabalho de direção, como ao trazer a câmera girando em torno dos personagens quando estes bebem uma bebida alcoólica, em uma sacada interessante e bem humorada na dose certa, ou então ao enfocar o protagonista por detrás de grades enquanto ele discute com sua esposa, reforçando seu sentimento de aprisionamento.

E por mais que o roteiro acabe parecendo um pouco reverencial demais com o texto original da peça, fazendo com que os diálogos às vezes se estendam mais do que o necessário e a duração total da projeção seja um pouco elevada, Cercas é um filme muito impactante, com uma excelente direção, um elenco fortíssimo, e que acima de tudo comove pelo drama e pela força de seus complexos personagens.

Ótimo!

João Vitor, 21 de Janeiro de 2017.

Crítica originalmente publicada no site Pipoca Radioativa: http://pipocaradioativa.com.br/

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