sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Crítica: Elle, de Paul Verhoeven

O grande crítico de cinema Roger Ebert tinha uma frase genial que dizia: “Não importa sobre o que um filme é, importa como ele é sobre aquilo que ele é”. Sim, é uma citação que pode parecer complicada, mas simplificando em outras palavras, significa que todo filme tem que funcionar dentro de sua própria lógica. Desta forma, se um filme se estabelece como um drama realista e pesado, não faz sentido incluir personagens mais exagerados, ou incidentes que soem muito longe da realidade. Por outro lado, se o filme quiser criar um universo menos realista, não há problema algum, desde que não contrarie sua própria lógica tentando se levar a sério demais. Dentre os filmes que tomam a liberdade de criar um universo próprio, e que mesmo longe da realidade se mostram extremamente eficiente, destaco alguns como Fargo (na realidade, quase toda a carreira dos irmãos Coen serve de exemplo), Deadpool, O Grande Hotel Budapeste, Trainspotting, e agora este novo e ótimo Elle – que mesmo com uma trama relativamente previsível, funciona perfeitamente bem dentro de sua própria lógica, e fornece uma narrativa desconfortável e peculiar, que compreende que sua força não está em sua história e sim em sua protagonista.


O filme conta a história de Michèle (Isabelle Huppert), uma executiva em uma empresa de games que administra sua vida de maneira muito particular, tanto nos negócios quanto nas relações complicadas como o filho e a nora, e também com o ex-namorado. Mas após ser estuprada dentro da própria casa por um agressor identificável, ela tenta impedir que isso a abale, ao mesmo tempo em que teme que o agressor possa retornar.

Trazendo desde o início um senso de humor apurado, que vale muito mais por sua peculiaridade e originalidade do que por gerar risadas propriamente ditas (a cena que se passa em uma maternidade e outra que traz a protagonista recebendo uma noticia séria de um médico são os meus momentos de humor favoritos de toda a projeção), o diretor holandês Paul Verhoeven (do excelente e já clássico Robocop) também acerta por incluir cenas que trazem a protagonista reencenando mentalmente a violência à qual foi submetida, imaginando o que poderia ter acontecido se ela tivesse conseguido reagir – em uma sacada genial, já que isso é algo que todos nós fazemos quando ficamos imaginando o que poderia ter acontecido se tivéssemos agido diferente em determinada situação (e isso serve para aproximar emocionalmente a personagem principal do espectador, já que apesar de ser completamente excêntrica, a nossa capacidade de se importar com ela é muito importante para o funcionamento do filme).

E é justamente aí que o filme se diferencia tanto e se mostra tão eficiente: em sua protagonista. Vivida com uma entrega total pela excelente Isabelle Huppert (que merece aplausos por, mesmo depois de tanto anos de uma já consagrada carreira, ter a coragem de aceitar um papel tão desafiador como este), Michèle é uma mulher completamente distante do universo do espectador (garanto que ninguém jamais conheceu alguém exatamente como ela), mas pelo talento de Huppert e Verhoeven se torna possível acompanhar até mesmo suas ações mais absurdas (a relação com a mãe e com a nora são particularmente marcantes pela peculiaridade) sem que soem artificiais ou gratuitas, já que como disse anteriormente, o filme compreende sua própria lógica e trabalha dentro dela – desta forma, não precisamos de grandes momentos melodramáticos para acentuar um acontecimento trágico, o diretor deixa o espectador compreender a dimensão do que acontece por si mesmo, enquanto embarca na frieza de sua protagonista e nos oferece algo que só o bom cinema pode oferecer: uma experiência irreal, marcante e única.


Muito Bom!

João Vitor, 16 de Novembro de 2016.

Crítica originalmente publicada no site Pipoca Radioativa: http://pipocaradioativa.com.br/

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